quinta-feira, maio 31, 2018

Rumo ao fundamental

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Envolta em expectativa tanto para as crianças, quanto para pais e escola, a transição da Educação Infantil para o Ensino Fundamental impõe um desafio: integrar as duas etapas, evitando a ruptura entre brincadeira e letramento




“Dois, dois”, repetem as crianças da Emeb Vital Brasil, em São Bernardo do Campo, na Grande São Paulo, ao mesmo tempo em que mostram o número com as mãos ao serem questionadas sobre quando vão para o Ensino Fundamental. Com entusiasmo, mostram no calendário os dois meses até o final de 2012. A maioria delas vai para a Emeb Viriato Correia, a poucos metros dali. A proximidade é um dos fatores que faz muitas já conhecerem a nova escola.

A princípio, a questão sobre o que vão fazer no EF desperta mais respostas relacionadas ao brincar: “lá tem quadra e vamos jogar bola”, diz uma delas. Os dois parquinhos e o jardim encantado também são lembrados. Porém, a mesma questão acaba gerando outras respostas, como “vai ter muita lição de casa”, “vamos usar caneta e caderno grande”, dizem ao mesmo tempo. “Lição de letra de mão”, diz um aluno já alfabetizado, apontado por elas como inteligente, que, por sua vez, justifica a ida para a nova fase escolar para ficar “ainda mais inteligente”.


A percepção desses alunos dialoga com o panorama desenhado pela pesquisa Faz de conta que eu cresci: a voz da criança na transição da Educação Infantil para o Ensino Fundamental, de Adriana Zampieri Martinati, coordenadora de área da Secretaria Municipal de Educação de Limeira (SP). Seu estudo com crianças na Educação Infantil, e no ano seguinte, com as mesmas crianças ingressando no EF, mostra a expectativa e a curiosidade sobre a nova escola, mas também a noção da ruptura, já que em alguns momentos elas dizem que farão “muita lição”, por exemplo. “Apesar de a legislação prever a articulação entre o EI e o EF, na prática se vê a escassez de um trabalho sistemático acerca da vida futura e pregressa destas crianças”, avalia Adriana.

Brincar desvalorizadoSe, num momento, a brincadeira é valorizada, no outro é a alfabetização que se torna prioridade. Se num ano, a criança deveria estar em um espaço livre e instigante, no seguinte ela deve ficar sentada na cadeira. Como minimizar o estranhamento e o impacto de uma transição imposta apenas pelo currículo, já que a criança é a mesma? Para Adriana, é preciso ouvir essas crianças, promover entrevistas, visitas à nova escola, festa de encerramento etc. “Tais ações permitem analisar as expectativas das crianças, aliviar tensões e angústias e promover maior segurança, além de um trabalho que contemple as diferentes formas de expressão, destacando o papel da atividade lúdica. Mas para isso é fundamental investimento maciço na formação continuada”, defende.

Os documentos da área enfatizam que, mesmo nos primeiros anos do Ensino Fundamental, as práticas pedagógicas devem garantir às crianças múltiplas experiências, dentre estas as brincadeiras têm relevância especial. Mas tanto na pesquisa prática quanto no levantamento teórico, Adriana identificou que no primeiro ano do EF a ênfase maior das escolas é na alfabetização e letramento. “Há professores que não reconhecem a importância do brincar. É uma questão ampla, porque nossa cultura desvaloriza isso, vê como uma atividade de recreação que, às vezes, até atrapalha a aprendizagem”, avalia.

As habilidades sociais da criança também merecem atenção, porque podem ser responsáveis pelos momentos mais estressantes na nova fase. A professora e psicóloga Gisele Regina Stasiak pesquisou a percepção do estresse entre as crianças durante essa transição. Em seu estudo, o relacionamento com os colegas e demandas não acadêmicas foram as situações que apareceram como as mais estressantes. “Não foi o que exigem delas, como a nota, mas a interação social”, explica. Como exemplo, ela cita algumas situações colocadas no estudo nessa categoria: ‘meus colegas não me convidaram para brincar’ e ‘a professora me deu bronca’. Assim, além da preparação gradual da criança, Gisele destaca a importância do desenvolvimento da sua habilidade social.

No contexto familiar, o estudo revelou duas variáveis importantes: a comunicação negativa dos pais (brigam e xingam) e a punição corporal. As crianças que viviam neste contexto apresentaram estresse maior. “Elas demonstraram o desejo de melhor interação na escola e na família”, relata. Para ela, a escola poderia propor aos pais um programa de qualidade na interação familiar.

Brincar letrando Vanessa Ferraz Almeida, professora adjunta da Faculdade de Educação da UFMG, defende que para se ter uma integração maior entre estes dois primeiros níveis é necessário trazer o brincar para a Educação Infantil, mas sem esquecer a linguagem escrita. E no Ensino Fundamental, priorizar a linguagem escrita sem esquecer que as crianças também brincam. “Por isso digo ‘brincar letrando’ ou um ‘letrar brincando’ que é uma paráfrase da Magda Soares do livro Letramento: Um tema em três gêneros, que fala da apropriação do código da leitura e escrita contextualizado pelas práticas sociais”, explica.

Para entender este processo, Vanessa acompanhou crianças de uma escola de EI da rede municipal de Belo Horizonte e, depois, o mesmo grupo no EF. Durante a pesquisa, ela observou que grande parte das rotinas, da organização do tempo e do espaço estava centrada em torno do brincar (entre 26% e 64% do tempo total) e das rodas de conversa (entre 5% e 25% do tempo total).

“Concordo com esta organização, entretanto, à medida que as crianças iam brincando, também procuravam se apropriar da cultura escrita”, oberva ela.

Surpresa com a busca incessante das crianças pela cultura escrita e pela leitura, a pesquisadora percebeu que elas queriam se apropriar de uma cultura grafocêntrica. Apesar de a professora das crianças colher este interesse, sua sistematização não aconteceu. Para ela e outros pesquisadores do Centro de Alfabetização, Leitura e Escrita (Ceale), da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), as crianças não têm de sair da EI sabendo ler e escrever, mas as habilidades e capacidades relacionadas ao letramento precisam estar presentes. 

Quando o ano acabou, ela conta que as crianças estavam felizes, brincando e com muita vontade de ler e escrever. No entanto, ao chegarem no EF, as rotinas e a forma de organização do tempo e do espaço não atenderam as expectativas. Mas mesmo em atividades sem sentido, as crianças começaram a brincar. Durante a atividade “Ligando formas iguais” – em que as crianças deveriam ligar os sorvetes iguais, passar o lápis no tracejado dos cones, colorindo-os de laranja, e colorir os sorvetes da cor que quisessem – , começou a brincadeira quando uma criança disse: ‘quem quer sorvete?’ E por meio da construção coletiva de uma sorveteria, criaram um contexto que deu sentido à atividade.

Salas heterogêneasSegundo Silvia Gasparian Colello, professora de psicologia da educação da USP, em geral a passagem da EI para o EF tem um significado de ritual. Ela conta que algumas crianças dizem: ‘agora, já estou no EF’, porque é algo importante e querem fazer dar certo. Por meio de novos desafios e aprendizagens, estimulando assim o avanço da criança, esse ritual pode assumir conotação positiva, e não de perda.

Mas proporcionar novas aprendizagens é desafiador para o professor que tem uma sala tão heterogênea no começo do EF, com crianças quase alfabetizadas ou alfabetizadas, e outras não. Silvia lembra, entretanto, que não existe classe homogênea em nenhuma circunstância: as pessoas são diferentes. “Isto não aumentou com a ampliação do EF para nove anos, mas, sim, com a democratização quantitativa da escola”, defende.

Outra cultura escolarPara a pesquisadora, uma alternativa é descentralizar, ou seja, dar atividades que possam ser feitas por duplas, por trios ou por grupos de crianças nas quais cada grupo possa desempenhar o seu papel. Isso faz com as crianças se ajudem e o foco de formação da classe se multiplique. “O problema é que a cultura escolar é muito centralizada no professor. Então há crianças que vão bem e outras que vão mal, e não é dada chance para quem tem menos expe­riência. Dividir tarefas é algo a ser construído e tão importante quanto a alfabetização”, diz.

“É preciso lembrar que o currículo não consiste somente em alfabetizar: há o aprendizado de matemática, de ciências, de estudos sociais, e tudo isso pode ser feito na forma de projetos”, diz a pesquisadora da Fundação Carlos Chagas (FCC) e professora do programa de pós-graduação em Educação da PUC/SP, Maria Malta Campos, uma das autoras da pesquisa A contribuição da educação infantil de qualidade e seus impactos no início do ensino fundamental, rea­lizada pela FCC, que confirmou o que muitos estudos apontam: quem frequentou a Educação Infantil teve melhores resultados na Provinha Brasil e, se essa educação foi de qualidade, os resultados refletiam esse efeito também.






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Idade polêmica

A resolução nº 7 do Conselho Nacional de Educação (CNE), de 2010, que fixa as Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Fundamental de nove anos e orienta que o aluno que não tenha 6 anos completos até 31/03 do ano letivo deve permanecer na Educação Infantil, tem gerado polêmica e diversas liminares na Justiça. Em jogo estão o entendimento do que vem a ser a educação nas duas etapas de ensino – a EI e os primeiros anos do Ensino Fundamental.

Em junho de 2011, Elisa Bekerman foi à Justiça para que o filho Guilherme, nascido em 06/07/2006, fosse matriculado no 1º ano do EF. Em São Paulo, a data de corte é até 30/06. Ela argumenta que apenas uma data não assegura se o seu filho tem condições de ir para o 1º ano. Ela procurou a Secretaria de Educação, onde prevaleceu a orientação do CNE, e depois buscou um advogado. “Como a escola não forneceu documento atestando sua aptidão para cursar o 1º ano do EF, foi preciso laudo de uma fonoaudióloga e um psicólogo,” explica. Hoje, Guilherme está no final do 1º ano. “Fiquei tranquila porque esta escola desenvolve muitas atividades lúdicas e brincadeiras”, diz Elisa.

Para a advogada especializada na área de educação Claudia Hakim, não se trata de colocar as crianças mais cedo no EF, mas, sim, de fazer prevalecer o direito de igualdade de tratamento. “As regras mudaram e feriram direitos constitucionais que garantem a educação das crianças”, defende a advogada, que tem mais de 145 liminares concedidas em mandados de segurança a respeito da questão.

Já para Vanessa Ferraz Almeida, professora adjunta da Faculdade de Educação da UFMG, a maioria dos pesquisadores em educação defende a permanência da criança na Educação Infantil por ser um espaço onde a brincadeira seria mais facilmente respeitada. Para a pesquisadora, a maioria das escolas do EF, na prática, não está preparada para as crianças de 6 anos, que dirá de 5. “Mas pensando na criança e não na realidade prática, até os 10 anos a criança precisa ter sala de aula adequada, parquinho e o tempo de brincadeira respeitado. Daí, a princípio, não faria diferença se ela está aqui com 5 anos ou ali com 6 anos”.
 

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