quinta-feira, março 12, 2009

caráter educativo

Citando Anatole France, Leonardo Arroyo (1968, p.26) comenta sobre a repugnância que sentiam algumas crianças diante de ‘livros feitos para elas’, apontando então duas características da má literatura infantil: a puerilidade e o tom moralizante. Ao examinarmos os estudos sobre as primeiras obras para crianças publicadas no Brasil, podemos também perceber seu traço pedagógico e moralizador.
A literatura infantil brasileira nasce quase no século XX, mas desde o século XIX começa a surgir uma ou outra obra direcionada à criança. A Literatura infantil européia inicia às vésperas do século XVIII, quando em 1697 o francês Charles Perrault publica “Contos da Mamãe Gansa”. “Charles Perrault coleta contos e lendas da Idade Média e adapta-os, constituindo os chamados contos de fadas, por tanto tempo paradigma do gênero infantil” (CADEMARTORI, 1986, p. 33). Dessa forma, citando E. Montegut, Jesualdo Sosa (1978, p.130) diz que as personagens de Perrault “não sabem exatamente o que seja moralidade, ou imoralidade. Sabem, isto sim, o que sejam fineza, bondade, malignidade, prudência, curiosidade...”
Em Literatura Infantil Brasileira, Histórias & Histórias, as autoras Marisa Lajolo e Regina Zilberman comentam que as primeiras obras destinadas ao público infantil apareceram no mercado livreiro na primeira metade do século XVIII.
Anteriormente foram escritas histórias apenas no classicismo francês (século XII), como as Fábulas, de La Fontaine, os Contos da Mamãe Gansa, cujo título original era Histórias ou narrativas do tempo passado com moralidades, que Charles Perrault publicou em 1697, reunidas depois como literatura própria para crianças. Segundo as autoras, além do autor francês começar a literatura infantil, ele literalizou os contos de fadas.
O fato de Perrault não assinar a primeira edição indica as dificuldades do gênero que se inicia. “Desde o aparecimento, ele terá dificuldades de legitimação. Para um membro da Academia Francesa, escrever uma obra popular representa fazer uma concessão a que ele não podia se permitir”. (LAJOLO e ZILBERMAN, 1988, p.15).
E na esteira desse raciocínio, a literatura infantil brasileira, considerada um gênero menor dentro do universo literário, perde com o desprezo por parte dos teóricos de que nos fala Leonardo Arroyo: “poucos autores a ela se referem com objetivos críticos” (1968, p. 216). Ao falar da perspectiva adotada em Literatura Infantil Brasileira: histórias & histórias, Marisa Lajolo e Regina Zilberman ressaltam que normalmente os trabalhos sobre literatura infantil desconsideram o diálogo com os outros textos e voltam-se ao seu caráter educativo.

desumanização

A história de Gregor Samsa, A Metamorfose, de Franz Kafka, é sobre um homem insetizado, ou seja, um homem transformado em inseto. Trata-se de uma alegoria da desumanização do homem moderno.
Esta novela, que marcou a história da literatura moderna, é um grande monólogo e dentro dele a personagem ouve as vozes dos outros personagens. Assim, na textualização da personagem acontece sua interiorização, ela não age, mas, sim, pensa.
Tudo acontece na mente de Gregor, como uma espécie de diálogo interior e quando ele acorda inseto, vê-se obrigado a colocar-se diante de sua própria alienação. “Fechou os olhos para não ver aquele reboliço das pernas (...) ‘Meu Deus!’”, pensou então. “Quão trabalhosa é a profissão que escolhi! Um dia sim e outro também, em viagem”. (KAFKA,1998, p.8).
A representação da personagem como uma autoconsciência é uma das questões que aproximam A Metamorfose da construção polifônica do romance. Podemos dividir a história em três partes. A primeira seria a autoconsciência da alienação e da desumanização da personagem. Nela, Gregor não entende a situação fantástica e acredita que voltará ao normal. Ele não compreende que o real é o inseto. Portanto, seria a autoconsciência da alienação - passagem da inconsciência para a consciência de Gregor. E com o tempo, ele toma consciência do ser submisso, dependente, preso as obrigações do trabalho e da família.
A fala de Samsa traz em seu interior o que os outros dizem ou pensam a seu respeito. “Já sei que na firma ninguém quer bem ao viajante. Todos acreditam que ganha dinheiro com espertezas, e leva uma vida de luxo” (KAFKA, 1998, p. 22).
E é neste longo monólogo interior contado por um narrador que repercute a fala das outras personagens. Percebemos as outras falas se reproduzirem no discurso vitimista relatado por Samsa e no discurso crítico de Kafka.
A segunda parte, versa sobre a tomada de consciência por parte da família, mas é uma falsa conscientização, pois acreditam que o estado de Gregor é passageiro, eles veem o inseto como ficção e o consideram uma doença. ‘Mas, certo, arrependeu-se de seu procedimento, pois tornou a abrir no mesmo instante e entrou nas pontas dos pés, como se fosse o quarto de um enfermo grave ou o de um estranho’(KAFKA, 1998, p. 30).
A família inconsciente, após tentar explicar o novo estágio do filho como doença, tem de tomar uma solução. E é na terceira parte da história, quando Gregor não muda, que fica claro que ele já não pode se negar a aceitar a verdade, mas a família inconsciente sim. Gregor se mata. A família volta à vida alienada redescobrindo a irmã que se prepara para o casamento salvador que os integrará a sociedade inconsciente. ‘(...) tinha-se desenvolvido e convertido em uma linda jovem cheia de vida. Sem trocar palavra, (...) disseram-se um ao outro que já era tempo de encontrar um bom marido para ela. (KAFKA, 1998, p. 74)
E nesse monólogo do próprio Samsa que integra a voz do autor crítico e irônico: ‘Mas o pai, com a obstinação que se tinha apossado dele desde que era empregado, persistia em querer permanecer mais tempo à mesa. (KAFKA, 1998, p. 52), a do discurso do narrado vitimista de Gregor, ‘E depois perdia também o humor de preocupar-se pela sua família e apenas sentia em relação a ela a irritação produzida pela pouca atenção que se lhe dispensava’ (KAFKA, 1998, p. 55) às vozes de todos as personagens.

o mestre

a poesia de Caeiro - tido pelas demais personagens heteronímicas criadas por Pessoa, como o mestre de todas elas - , busca e propõe uma nova escritura sem signo, sem máscaras: a utópica poética do silêncio.
A proposta didática de Caeiro dessa paradoxal “aprendizagem de desaprender” pode ser sintetizada no verso “eu não tenho filosofia: tenho sentidos” (CAEIRO, p.42). Para entender a objetividade do sentido do texto caeiriano, é preciso saber que “Caeiro apresenta-se como o poeta das sensações estremes: “A sensação é tudo (...) e o pensamento é uma doença” – diz ele segundo um texto de Pessoa” (SEABRA, 1991, p.91).
Segundo Segolin, “a linguagem poética pessoana é, antes, uma linguagem que dialoga com outras linguagens”. A multiplicação de personalidades, na forma dos textos-personagens criados por Pessoa, demonstra que somos seres polifônicos, assim o “eu” que eu julgo ser é falso. Do autor que vê, interpreta, descobre esse outro “eu”, isto é, descobre o homem no homem, exige-se um novo enfoque desse homem – o enfoque dialógico (...) em outro “eu” que se auto-revela livremente (BEZERRA, 2007, p.193).
Sobre os textos-personagens, Segolin ressalta que cada um deles é uma experiência discursiva”. Um deles é Caeiro que não acredita no pensamento, pois pensar é produzir linguagens, dessa forma “a palavra ficaria sobrando – restariam apenas as coisas e os seres, e a presença puramente objetiva do homem” (SEGOLIN, 1992, p.51)
Para Jacinto do Prado Coelho, há dois Caeiros, “o poeta e o pensador, sendo o primeiro que em teoria se desdobra no segundo” (COELHO, 1969, p.19). Segundo José Augusto Seabra, Caeiro sabe que em poesia nomear é criar a realidade do que se diz.“E assim, por uma condição inerente à linguagem poética, ele não faz mais do que dar vida, através dos seus poemas, às próprias coisas” (SEABRA, 1995, p.95).
A idéia de que a linguagem literária se distancia da linguagem usual adquiriu importância em Aristóteles, “segundo o testemunho de Isócrates, considerava o processo de estranhamento como conatural ao discurso poético” (SILVA, 2006, p.44).
Assim, a poesia de Caeiro não é a escritura nova, mas à sua proposição “que só existiria na medida em que o homem lograsse anula-se e anular o signo, para só deixar falar a sensação objetiva”, (SEGOLIN, 1992, p.51)
Para tanto, em oposição à língua poética trabalhada, Caeiro poetiza o prosaico, “Caeiro opõe a discursividade linear e despojada de seus versos. (...) por meio de um caminho anti-poético, ele procura reencontrar uma nova linguagem poética”. (SEGOLIN, 1992, p.39). Caeiro auto-indaga-se sobre a possibilidade da criação de uma poesia anti-poética.
Percebemos ao longo da obra de Caeiro se repetir o tema que trata da ausência de significação e a demonstração da incapacidade que a linguagem demonstra ter de representar o real. “Para atingir a realidade em sua concretude pura, despida de quaisquer traços subjetivos e abstratizantes, é necessário renunciar ao signo, ao nome, à palavra enfim” (SEGOLIN, 1992, p.46).

quarta-feira, março 11, 2009

e viveram felizes para sempre...

História meio ao contrário, (Ana Maria Machado / Humberto Guimarães), já inicia pelo tradicional desfecho “e viveram felizes para sempre”. Deste modo, o narrador introduz o leitor à história de outra forma: propondo a ele justamente outro ordenamento ao gênero.
Extensa parcela dos textos da literatura infantil está dentro do modelo elaborado por Propp, mas, acompanhando a produção contemporânea, História meio ao contrário transgride alguns aspectos do modelo proppiano que, entre outras características, dá preferência a personagens fixos.“É na ruptura com as funções tradicionais da personagem caracterizada pelo modelo proppiano que se esteia a parte mais significativa da produção literária contemporânea destinada à infância” (PALO, 1986, p.25).
Outra característica da literatura infanto-juvenil contemporânea é a meta-história ou a anti-história. “Ao desejar romper com a ordem tradicional nos planos interno e externo, os textos tendem a tornar-se paráfrase de outros”. (KHÉDE, 1983, p.14).
Para se entender então este ‘jogo’ de inversão é necessário que o leitor conheça os contos de fadas tradicionais com suas narrativas seqüenciais. Desse modo, na História meio ao contrário o narrador deixa claro à sua intenção: “Tem gente que só quer saber de histórias muito exatas e muito bem arrumadinhas – então é melhor mudar de história, porque esta é meio atrapalhada mesmo e toda ao contrário”, (MACHADO, 1986, p.5).
Após esta declaração do narrador, a história sobre o reino distante e encantado que não foi ‘feliz para sempre’ inicia com a introdução das personagens, até então, fixas, uniformes: o rei, a rainha e a princesa.
A incompreensão do rei sobre o pôr-do sol, resultado de sua ‘cegueira’, o faz julgar que o dia tenha sido roubado. Cria-se um ‘monstro’, que é a noite, pelo Primeiro Ministro para enganar o rei deixando-o alheio como sempre aos reais problemas do reino.
Nesta parte, a narrativa segue linear, e o rei propõe que quem liquidar o monstro se casará com sua filha. Aparece então um príncipe encantador (não encantado) que não está atrás do casamento com a princesa, mas, sim, de desafios.
O embate entre o príncipe e monstro não ocorre, pois ele começa a conversar com uma pastora e se esquece da batalha. “Mas enquanto conversavam e se olhavam, o tempo passava. O dragão foi ficando com sono, fechando o olho e se retirando. O sol começava voltar aos poucos, com coloridos parecidos com os do fim da tarde” (MACHADO, 1986, p.36).
Outra ruptura da função da personagem é não realização do casamento da princesa. Dessa forma, o acontecimento que daria o encerramento à história não acontece, pois a princesa recusa um casamento arranjado. “Meu real pai, peço desculpas. Mas se o casamento é meu, quem resolve sou eu. Só caso com quem eu quiser e quando quiser. O príncipe é muito simpático, valente, tudo isso. Mas nós nunca conversamos direito” (MACHADO, 1986, p.37).
Assim, contrapondo-se às funções fixas das personagens dos contos de fada, nos quais, ao final da narrativa, as princesas se casam com os príncipes que vencem as batalhas com monstros e vivem felizes para sempre, a princesa de História meio ao contrário, não se casa e escolhe viajar para outros reinos onde faz novos amigos.
E para contrariar mais as funções fixadas dos contos tradicionais, no final da história o príncipe se casa com a pastora e se torna um vaqueiro.

nem cavaleiros da fé nem super-homens

Minha vida teve momentos em que os heróis teriam aceitado o medo
Adolfo Bioy Casares

Mas a nós, que não somos nem cavaleiros da fé
nem super-homens, só resta,
por assim dizer, trapacear com a língua.
Roland Barthes

A literatura, como toda a arte, é uma confissão de que a vida não basta
Fernando Pessoa

O Cortiço: realismo ou naturalismo?

Qual o lugar que a obra literária de Aluísio Azevedo O Cortiço (1890) ocupa no realismo/naturalismo brasileiro?
Ao pesquisarmos parte da crítica sobre a obra de Aluísio Azevedo, observamos que responder a questão O Cortiço: realismo ou naturalismo se torna um desafio. E grande parte do problema se deve à confusão conceitual entre naturalismo e realismo que a domina.
Verificamos que essa confusão conceitual se deve em grande parte à crítica moral e ideológica sobre a obra de Aluísio Azevedo. Djacir Menezes, em Evolução do Pensamento Literário, sentencia: “Aluísio Azevedo seria o campeão do naturalismo... seu mestre é Emile Zola” (p.234). E Menezes relata a opinião da crítica da época sobre Zola. “A imagem de Zola pornógrafo ávido de escândalo, deliciado na putrefação da sociedade” (p.234).
Bezerra de Freitas, em Forma e Expressão no Romance Brasileiro, diz que muitos escritores se dedicaram para diminuir o valor da obra de Aluísio de Azevedo, mas ele também a diminui fazendo concessões a ela. “Os romances O Mulato, Casa de Pensão, O Cortiço constituem páginas do mais espesso naturalismo, não há dúvida, mas de irrecusável valor como documentos de uma época e demonstração da existência de uma literatura brasileira” (FREITAS, 1947, p.245).
Outra avaliação é a de que o naturalismo brasileiro foi uma cópia do francês. José Veríssimo, em História da Literatura, afirma isso e ressalta que há poucas obras notáveis frutos de Zola e de Eça no Brasil. Para ele, Aluísio de Azevedo é um nome de destaque, mas que segue a fórmula francesa, ou seja, é também um copiador.“O principal demérito do naturalismo da receita zolista, já, sem nenhum ingrediente novo, aviada em Portugal por Eça de Queiroz e agora no Brasil por Aluísio de Azevedo, era a vulgarização da arte que em si mesmo trazia” (VERISSIMO, 1963, p.260).
Veríssimo ainda lamenta a falta de êxito do naturalismo inglês no Brasil “tão sóbrio e distinto”, mas ressalta que este foi transmitido na ficção do “escritor que é a mais alta expressão do nosso gênio literário, a mais eminente figura da nossa literatura, Machado de Assis” (VERISSIMO, 1963, p.304).
Outra crítica que compara Aluísio a Machado é da historiadora Lucia Miguel Pereira. Para ela, Aluísio de Azevedo é inferior a Machado, pois este seria um representante do realismo psicológico e Aluísio do naturalismo. Na obra História da Literatura Brasileira, a historiadora justifica sua visão: “Por isso é que, falhando nos livros de análise psicológica, revela-se criador naqueles em que, como O Mulato, Casa de Pensão e, principalmente, O Cortiço, se lança aos grupos sociais”.(PEREIRA, 1957, p. 154).
Na obra O Romance Brasileiro Olívio Montenegro também desqualifica a obra de Aluísio por não ser a análise psicológica o seu “forte”.
No ensaio De Cortiço a Cortiço, Antonio Candido afirma que Aluísio de Azevedo se inspirou em L’Assommoir de Èmile Zola, para escrever O Cortiço e que em vários aspectos ele é inferior ao de Zola, mas o crítico atesta o caráter próprio e o modo de compor realista de Aluísio de Azevedo ao dizer que este reproduziu e interpretou a realidade que o cercava.
Na comparação com a obra de Zola, Candido também considera O Cortiço tematicamente mais variado, pois, segundo ele, Aluísio concentrou no mesmo livro uma série de problemas e ousadias que Zola dispersou entre os vários romances. O critico ainda ressalta que a originalidade do romance de Aluísio está na coexistência íntima do explorado e do explorador, “tornada logicamente possível pela própria natureza elementar da acumulação num país que economicamente ainda era semicolonial. Na França o processo econômico já tinha posto o capitalista longe do trabalhador” (CANDIDO,204, p. 126).
No estudo dos aspectos intrínsecos de O Cortiço, percebemos que o sentido da história é extraído da observação dos conflitos reais (sabe-se que Aluísio esteve em cortiços e observou temas sensíveis, sintomas de desintegração social). Observando a relação entre a fábula, ou seja, o material para a construção da narrativa e a forma como ela é contada, percebe-se o método realista da observação e da composição de Aluísio responsável pela verossimilhança interna de seu trabalho literário.
Na sua forma realista de compor, Aluísio constituiu planos narrativos como o nascimento, desenvolvimento, declínio e transformação do cortiço. O declínio do cortiço acontece com a desintegração das personagens.
Em Personagem e Anti-Personagem, Fernando Segolin ressalta que, para os formalistas, a personagem, em princípio apenas um dos componentes da fábula, só adquire status de personagem literária quando submetida ao movimento construtivo da trama.
Em O Cortiço as personagens não são estanques, elas transformam o meio e a si mesmas. O Cortiço é marcado pelas histórias de cada um que se compõem em um todo. E a força da obra está em suas raízes históricas.
Com poucas exceções, ao longo da obra, as personagens sofrem transformações: as lavadeiras por meio das perdas; Jerônimo com a desintegração social; Pombinha passa pela transformação emocional; Miranda não se transforma, é a expressão da classe média burguesa e com a família prepara a filha Zulmira para o casamento com João Romão que a integrará à sociedade inconsciente.
Bertoleza junto de João Romão é quem dá sentido ao romance.“A crioula trintona, escrava de um velho cego residente em Juiz de Fora e amigada com um português que tinha uma carroça de mão e fazia fretes na cidade” (AZEVEDO, 1992, p. 15), está no início da história e é quem a encerra: “Bertoleza então, erguendo-se com ímpeto de anta bravia, recuou de um salto e, antes que alguém conseguisse alcançá-la, já de um só golpe certeiro e fundo rasgara o ventre de lado a lado”(AZEVEDO, 1991, p. 207). A escravidão é um tema que perpassa toda a história e é ligada a outro: a substituição da forma pré-capitalista pela capitalista.
A personagem de João Romão é a que tem uma transformação brutal (ascensão social). Para se transformar em burguês (parar de trabalhar para dirigir os negócios), mudou sua fisionomia, com novas roupas, novos hábitos, mas às custas dos outros..
Mas se João Romão está em ascensão e o cortiço em declínio ele tem de aplicar o seu capital novamente local. “Fora-se a pitoresca lanterna de vidros vermelhos; foram-se as iscas de fígado e as sardinhas preparadas ali mesmo à porta da venda sobre as brasas; e na tabuleta nova, muito maior que a primeira, em vez de “Estalagem de São Romão” lia-se em letras caprichosas: “AVENIDA SÃO ROMÃO” (AZEVEDO, 1992, p. 183).
Ao estudarmos parte da crítica sobre a obra de Aluísio verificamos que responder a questão 'O Cortiço: realismo ou naturalismo' se torna um desafio pela crítica moral e ideológica realizada. O Cortiço é uma obra realista pela forma como Aluísio observa os acontecimentos e a compõe. Aluísio Azevedo tratou de temas sensíveis relacionados às transformações sociais.

Arte da linguagem

“As pedras do chão,
esbranquiçadas no lugar da lavagem
e em alguns pontos azulados pelo anil,
mostravam uma palidez grisalha e triste,
feita de acumulações de espumas secas.”
Aluísio Azevedo


“A poesia é uma arte da linguagem.
A linguagem, contudo, é uma criação da prática.”
Paul Valéry

A invenção de Morel

O romance A invenção de Morel (1940), de Adolfo Bioy Casares, é considerado pela crítica um dos maiores da literatura latino-americana e é descrito como perfeito tecnicamente por Jorge Luis Borges no prefácio da obra.
No Brasil, a obra é publicada pela editora Cosac Naify, na coleção Prosa do Observatório, em 2006, quando recebe o posfácio de Otto Maria Carpeaux, texto publicado em 1966, no jornal O Estado de São Paulo, no qual o crítico ressalta o caráter prodigioso da obra de Casares. Para Carpeaux, à época, a seleção dos autores hispano-americanos para serem publicados no país deveria privilegiar “o que é muito bom” e o que não temos no país, ou seja, obras inéditas como as de Adolfo Bioy Casares. Desta forma, evita-se a divulgação de obras que, embora boas, tenham equivalentes na literatura brasileira. E os leitores brasileiros podem conhecer, conforme Carpeaux, ‘histórias para se espantar’, como A invenção de Morel.
Quando iniciamos a leitura de A invenção de Morel, caminhamos junto com o narrador-protagonista - que é um mistério tão grande quanto a enigmática ilha ou seus intrusos indecifráveis -, tateando a história perturbadora e densa que produz altercações geniais. O argumento é forte o suficiente para nos perdermos para muito além das tramas policiais e acelerarmos o passo em emoções extraordinárias.
Ao adentrarmos neste mundo fantástico de Casares, mas ‘não sobrenatural’, como observa Borges, somos levados - por meio de uma linguagem labiríntica, com frases quebradas -, do paraíso ao pântano, do céu ao inferno, já no primeiro parágrafo. A construção notável do início do romance é análoga ao que Borges na crítica sobre a obra em seu prefácio chamou de trama perfeita.
Na sequência, o narrador nos conta que acabamos de ler um registro do seu “adverso milagre”, um diário para a posteridade. A história de um condenado que levava uma vida horrível e foge para uma ilha que é foco de uma moléstia ‘que mata de fora para dentro’ em oito, quinze dias, mas ele já sobrevivia nela há mais de três meses. Ao decidir-se pela ilha, a personagem foge, na verdade, do que mata de dentro para fora.