Escrito por Analice Bonatto
Outro professor e outra escola são necessários para atender às
demandas do século 21, afirma o pesquisador e professor português
António Nóvoa, um dos maiores especialistas em formação de professores.
Ele esteve em São Paulo para o I Congresso Internacional e o III
Congresso Nacional de Dificuldades de Ensino e Aprendizagem –
Diversidade no Ensinar e Aprender: Educação, Saúde e Sociedade,
promovidos pela Associação Nacional de Dificuldades de Ensino e
Aprendizagem (Andea) e pela Universidade Presbiteriana Mackenzie em
agosto de 2013, e defendeu a necessidade de diálogo aberto com os
colegas e a importância dos espaços para trocas de experiências. Antes
do evento, Nóvoa concedeu uma entrevista exclusiva à Gestão Educacional.
O ex-reitor da Universidade de Lisboa destacou que não se aprende por
meio de um ensino transmissivo, mas a partir de pequenas redes e
pequenos grupos, os quais não dependem apenas da proximidade física.
Para ele, o desafio da aprendizagem não é mais a aquisição do
conhecimento, mas fazer com que o aluno seja capaz de dar sentido às
coisas, compreendê-las e contextualizá-las. Acompanhe a entrevista a
seguir.
Gestão Educacional: Por que é necessário repensar o papel do educador na contemporaneidade?
António Nóvoa: Porque hoje as tarefas do professor
são muito diferentes do que eram no passado. E os professores e as
escolas vivem ainda em um mundo que em grande parte já não existe. Às
vezes, nossas escolas se parecem com o brilho daquelas estrelas de que
ainda vemos a luz, mas já estão mortas, extintas. Eu creio que
precisamos de outro professor e de outra escola no século 21.
Gestão Educacional: Qual é o maior desafio no que se refere ao papel da escola no século 21?
Nóvoa: A aprendizagem é o grande desafio. O filósofo
francês Michel Serres chama os novos alunos de geração do pequeno
polegar. Ele explica que é uma geração que não se comunica, não pensa e
não aprende da mesma maneira que as anteriores. Os novos alunos têm
outras maneiras de estar na vida, de aprender, de trabalhar com o
cérebro, e nós ainda não nos adaptamos a isso, mas é preciso que essa
adaptação se faça. Se não compreendermos isso, podemos criar um fosso
geracional que dificultará encontrar as melhores maneiras de conduzir
esses jovens à aprendizagem. No passado, aprendíamos uma coisa e depois
comunicávamos essa coisa. Havia dois momentos: o de aprender e o de
comunicar o que aprendíamos. Hoje, esses dois momentos não existem,
porque é no próprio processo de comunicação que se gera aprendizagem e
conhecimento. Por isso, a comunicação tem valor diferente do que tinha
no passado, valor que, muitas vezes, não compreendemos ainda e não
estamos suficientemente atentos a ele. Olhamos muitas vezes para a
comunicação como indisciplina, incapacidade ou para o aluno que está
disperso a fazer coisas que não as que pedimos para fazer, ao invés de
conseguirmos utilizar a nosso favor esse potencial de comunicação que
existe nas novas gerações.
Gestão Educacional: Como o professor deve ensinar os alunos d
a geração do pequeno polegar?
Nóvoa: Isso implica obviamente um conjunto de
mudanças que leve à percepção de que, muito mais do que consumir
conhecimento, é importante a criação de conhecimento na escola. É no ato
da criação que se dá a dinâmica da aprendizagem. Mas é claro que não se
cria em cima do nada, não se cria no vazio, mas a partir de um conjunto
de atividades. [É preciso] perceber a importância das redes, pois não
se aprende por meio de um ensino transmissivo, mas a partir de pequenas
redes, de pequenos grupos que podem ser de proximidade física ou de
internet. Esse potencial que está nas redes é imenso e se aprende por
meio de um exercício de capacidade de ligar e sistematizar
conhecimentos, muito mais do que a partir da ideia de que é preciso se
apropriar do conhecimento e ter um ensino transmissível etc. Hoje, o
desafio da aprendizagem não é o da aquisição do conhecimento. O nosso
problema é fazer com que o aluno seja capaz de dar sentido às coisas,
compreendê-las e contextualizá-las.
Gestão Educacional: Quais mudanças são necessárias para que a escola seja capaz de atender a esses desafios?
Nóvoa: Ela tem de ser uma escola também construída
em redes, em espaços diferentes. A sala de aula é uma ideia que
progressivamente vai desaparecer para se criarem outros espaços. E isso
implica que os professores coletivamente se apropriem desses espaços e
deem sentido ao seu trabalho escolar. Nós já não precisamos de bons
professores, que deem boas aulas em salas de aula. É melhor que deem
boas aulas do que más aulas (risos), mas não é disso que precisamos.
Hoje precisamos de um professor capaz de trabalhar com os outros
colegas, que seja capaz de organizar as atividades do conjunto da escola
em sua imensa diversidade, e não como em uma fábrica.
Gestão Educacional: Se cada escola é única, qual é o caminho para melhor proveito do potencialdelas?
Nóvoa: Esse é um dos grandes desafios que temos pela
frente. Eu me recordo daquela célebre frase de Jules Ferry[ministro
francês da Instrução Pública no final do século 19], o homem que
instalou o ensino laico, obrigatório e republicano, que disse uma vez,
sentado em seu gabinete: “não há nada que me dê mais prazer na vida do
que saber que neste dia, nesta hora, às 10 horas da manhã, todos os
alunos, em toda França, estão a fazer o mesmo ditado”. Essa ideia de
uniformização levada ao extremo por essa frase é obviamente o contrário
do que precisamos hoje. Nós precisamos de uma escola que esteja
enraizada na sociedade, em suas diferenças e que, por isso, seja capaz
de construir projetos distintos e escolas diferentes. As escolas de
formação de professores até 40, 50 anos atrás, em todo o mundo,
chamavam-se escolas normais. E por que se chamavam assim? Porque eram
escolas que pretendiam normalizar o ensino. Temos de fazer exatamente o
contrário. Hoje, nós precisamos de escolas anormais. Precisamos de
escolas que sejam o contrário dessa normalização e possam atender à
diversidade de situações.
Gestão Educacional: Qual o papel do professor nesse processo?
Nóvoa: Todas essas mudanças levam a uma grande
transformação do que são os processos de aprendizagem e, por essa via,
isso também é papel do educador na contemporaneidade. O grande educador
português Sérgio Niza diz que é preciso que os professores aprendam com a
medicina a fazer diagnósticos. O professor precisa saber o que faz
falta a uma criança ao invés de empurrá-la para fora da escola, de
excluí-la da sociedade. Ele precisa utilizar o seu conhecimento em prol
da inclusão e da capacidade de ensinar as crianças que não têm projeto
escolar inscrito no seu percurso de vida. E, hoje, cuidar do aluno é
cuidar de sua aprendizagem.
Gestão Educacional: Nesse contexto, qual a importância da formação continuada e da atualização do professor?
Nóvoa: Para que esse professor capaz de trabalhar
com os outros colegas possa emergir, é preciso que haja um trabalho
permanente de formação continuada. Uma formação continuada que não é ir
fazer cursos, simpósios ou encontros, mas que está no interior do
próprio trabalho da escola. A formação continuada se faz nesse exercício
de procura, de reflexão e de debate. Muitas vezes, é preciso convidar
alguém para ir à escola trabalhar com o grupo certas matérias ou as
questões de tecnologia. Mas a formação continuada não é fazer curso
disso ou daquilo, porque isso é completamente inútil do ponto de vista
da formação continuada. No fundo, o que eu disse sobre a aprendizagem é
coerente com a organização da escola: no interior da organização da
escola está o problema da formação continuada do professor.
Gestão Educacional: No Brasil, várias reformas educacionais
já foram feitas. Entretanto, os cursos de formação docente continuam
obsoletos. A formação docente deve ser encarada como prioridade para
resultados eficientes?
Nóvoa: Antes da formação docente, há um problema que
hoje se equaciona em todo mundo: nós só conseguimos resolver muitos
problemas da escola se conseguimos atrair para a profissão docente os
melhores jovens, os mais motivados etc. Por muitas razões, os jovens não
vêm para a profissão docente no Brasil nem no mundo. É uma profissão
desprestigiada, muito violenta e muito difícil, mas que as pessoas acham
que é fácil de desempenhar. Depois, temos um grande investimento para
fazer na formação docente, e os cursos de formação estão totalmente
inadequados e desajustados. Hoje, eles pararam no tempo e não têm sido
capazes de se renovarem e se reorganizarem. Há ainda um terceiro
problema, e que talvez seja o maior de todos, que é a fase de indução
profissional, isto é, quando a pessoa acaba o curso e começa a ser
professor. Esses dois ou três primeiros anos iniciais, momento em que se
introduz alguém na profissão, são os anos decisivos do professor. Há 50
anos sabemos que esses são os anos mais importantes; no entanto, as
pessoas estão completamente desprotegidas e sozinhas. E, depois, a
formação continuada na perspectiva de que já falamos, ou seja, centrada
na escola e em práticas de formação cooperada. No fundo, temos etapas
importantes: o recrutamento, que é um tema muito importante das
políticas públicas hoje, os programas de recrutamento do professor, a
fase de indução profissional e, depois, a formação continuada.
Gestão Educacional: Qual a importância da valorização do professor nesse processo?
Nóvoa: Claro que as questões salariais são muito
importantes nesse processo. Eu sempre digo aqui no Brasil que não há
grande diferença entre o salário de um professor primário e o de um
professor da universidade em Portugal. Já aqui há uma diferença enorme
entre um e outro. Há também um problema de afirmação de uma cultura
profissional, a qual chamo de colegialidade docente, que é a capacidade
de trabalhar em conjunto. Tudo isso são fatores muito importantes de
afirmação do prestígio do professorado, mas é claro que é uma guerra que
vai demorar muito tempo.
Gestão Educacional: Como isso deve acontecer na prática?
Nóvoa: Depende muito de fenômenos que são internos e
externos. O estatuto salarial e as condições de trabalho nas escolas –
porque não há prestígio quando o professor está em duas ou três escolas –
são exemplos de fenômenos externos. Outro [fenômeno] muito importante
(que por razões históricas seria complicado explicar agora) é que os
professores perderam o controle da formação dos professores, isto é,
quem forma o professor não é outro professor. Ele é formado por pessoas
que estão nas universidades e, muitas vezes, nunca entraram em uma sala
de aula. Houve um afastamento entre a profissão e a formação. Isso
desprestigia porque transforma a formação numa coisa mais técnica do que
propriamente profissional. É preciso políticas que valorizem
salarialmente o professor e que, nas universidades, aproximem os
professores da formação. Os problemas internos à profissão residem em
uma espécie de cultura individualista, na dificuldade de trabalhar em
conjunto e nas dificuldades de ter práticas de avaliação da profissão.
Por exemplo, um professor pode conviver facilmente com outro, em uma
sala de aula ao lado da dele, que trata mal os alunos e é incompetente. O
professor pode viver 10, 20 anos com isso porque sabe que, se for
levantar algum problema, isso vai trazer um conflito. Os médicos, por
exemplo, não convivem com isso. Se um médico cometer dois ou três erros
profissionais, as pessoas reagem. Há uma dinâmica de autoavaliação no
interior da profissão.
Gestão Educacional: Em muitas escolas, os alunos questionam a
autoridade do professor e, até mesmo, são violentos. Como o professor
pode fazer o aluno respeitar o ambiente à sua volta?
Nóvoa: As gerações anteriores sempre acham que se
perdeu autoridade e que já não há respeito. O que se escrevia há 50 anos
sobre autoridade e desrespeito é muito pior do que se passa hoje. Eu
não digo que hoje não há problema; é claro que há, mas é preciso
distinguir duas ordens de problemas: o discurso da indisciplina e o
discurso da violência, que é inaceitável, porque violência na escola não
pode acontecer de forma alguma. A indisciplina também não, mas é
preciso ver de que tipo de situação estamos falando. E é preciso
inteligência para lidar com isso. Acho que há muitos professores que têm
uma espécie de autoridade natural, que se impõe por ela própria, e há
professores que, por mais autoritários que sejam, não têm autoridade
nenhuma. Aliás, isso nos remete ao pensador suíço [Jean Jacques]
Rousseau,quando escreveu no livro Emílio que “a criança só deve fazer o
que quer”. Essa frase é sempre citada pelos educadores, mas as pessoas
não leem o que ele escreveu a seguir: “mas só deve querer aquilo que os
professores querem que ela queira. A criança não deve dar um passo sem
que o professor saiba o que ela vai fazer, a criança não deve abrir a
boca sem que o professor saiba o que ela vai dizer". Isso é a ideia de
uma autoridade que não se impõe pela força, mas pela capacidade de
perceber o aluno e compreender o que ele vai fazer. Agora, se o
professor deve ter autoridade? Claro, mas, para mim, a melhor definição é
a do [filósofo alemão Immanuel] Kant, quando ele diz que o professor
deve ter autoridade, mas que ela deve ser posta sempre a serviço da
liberdade do aluno. Eu acho que é o ensinamento mais importante na área
da educação: a autoridade não é para formar escravos, mas cidadãos
livres e, por isso, ela deve ser posta a serviço da liberdade do aluno.
http://www.gestaoeducacional.com.br/index.php/reportagens/entrevistas/637-o-professor-na-educacao-do-seculo-21