terça-feira, maio 20, 2014

A neurociência do desenvolvimento infantil aplicada à educação


 Escrito por Analice Bonatto
“A gente aprende o que [a gente] faz. A gente melhora naquilo que a gente faz. Se você quer promover o desenvolvimento cognitivo, precisa dar oportunidades de a criança usar as suas habilidades cognitivas”, afirma a neurocientista Suzana Herculano-Houzel. A pesquisadora concedeu entrevista à Gestão Educacional durante um dos encontros regionais de atualização para professores e coordena­dores da educação infantil e do ensino fundamental I, promovidos pelo Sistema Etapa, em São Paulo, no mês de setembro. Suzana foi uma das palestrantes do evento e falou sobre a neurociência do desenvol­vimento infantil aplicada à escola (para crianças de zero a dez anos). As características do amadurecimento emocional e saudável do cé­rebro e a ligação desse processo com o aprendizado estão entre os temas abordados por Suzana, que é autora do livro O cérebro em transformação (Ed. Objetiva), entre outros, colunista da Folha de S. Paulo e conhecida pela série Neurológica, exibida no Fantástico. A neurocientista também dirige o Laboratório de Neuroanatomia Comparada da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Acompanhe a entrevista.  

Gestão Educacional: Você fala a respeito da neurociência do de­senvolvimento infantil aplicada à escola e voltada às crianças de zero a dez anos. Por que o recorte nessa faixa etária?

Suzana Herculano-Houzel: De zero a dez anos é o período da infância. Daí em diante é a adolescência, [fase em que] começa uma segunda onda de transformações no cérebro. Anteriormente, acreditava-se que o período importante de motivações no cérebro e da formação deste na infância seria de zero a três anos. Hoje, sabemos que esse período é muito mais longo. Durante toda a infância, há modificações no cérebro, mas ainda assim acreditava-se que aos dez anos essas modificações estariam terminadas e o cérebro estaria pronto. Hoje, a neurociência mostra que não é assim. Primeiro porque as transformações do período da infância, de desenvolvimento do cérebro mesmo, duram toda a infância, ou seja, até os dez, onze anos de idade. Mesmo assim, quando se chega a essa idade, o cérebro ainda não está pronto, vem uma segunda onda de transformações, que são res­ponsáveis pelo comportamento adolescente. Essa divisão faz sentido em termos de desenvolvimento e de aplicação para a educação. Além disso, [a neurociência e o desenvolvimento infantil] são dois assuntos complementares que eu abordo em palestras diferentes nas escolas.

Gestão Educacional: Em que as descobertas sobre o desenvolvimento do cérebro podem contribuir para a educação?

Suzana: Toda vez que você entende melhor o assunto de que trata e com o qual lida na prática, o seu resultado é muito melhor, não só em relação ao desempenho efetivo e bem-estar de professores e alunos, mas também em relação ao aprendizado das várias interações na escola. É claro que você pode ser professor sem saber um pingo de neurociência e descobrir na prática temas e recomendações que a gente pode chegar a dar com a neurociência. Mas juntar forças é extraordinário. Quando se descobre que outras pessoas tratam do mesmo assunto que você, mas de maneiras complementares, ganha-se muito mais informação sobre o que se está fazendo. [O professor] consegue entender melhor “porque funciona melhor quando faço assim na escola com meus alunos”. E isso gera não só resultados melhores e satisfação para todo mundo, mas também aprendizado melhor, que é o que a gente quer na escola.

Gestão Educacional: De que forma os professores podem se aprofundar nessa questão?

Suzana: Há alguns cursos de atualização que oferecem esse tipo de conteúdo. A literatura em inglês já está muito mais avançada. Aqui no Brasil ainda há pouca coisa a respeito. Eu estou preparando um livro especificamente sobre a neurociência voltada à aplicação na escola. A neurociência do aprendizado e do desenvolvimento infantil e de adolescentes.

Gestão Educacional: A literatura nessa área, no Brasil, ainda é escassa. E os estudos?

Suzana: Há pouca literatura disponível no Brasil. Os estudos também são poucos. A neurociência tem avançado enormemente nessas áreas relevantes do aprendizado, da atenção, da importância da motivação, do próprio desenvolvimento cognitivo e emocional, mas esse tipo de pesquisa, em geral, não é feito no ambiente escolar ou especificamente voltado aos alunos, aos professores ou a essa interação. É o que a gente chama de pesquisa bem básica mesmo, mas o assunto é tão fácil de relacionar com o que acontece no ambiente escolar que, mesmo dessas pesquisas que não são feitas exatamente com professores e alunos, os resultados são diretamente aplicáveis.

Gestão Educacional: Quais são os países que têm pesquisas mais desenvolvidas nessa área, especificamente na escola?

Suzana: Onde eu vejo mais [pesquisa nessa área] é nos Estados Unidos e no Reino Unido. O Reino Unido tem uma preocupação grande em fazer essa aplicação da neurociência ao sistema escolar.

Gestão Educacional: Quais as mudanças mais expressivas no cérebro da criança até os dez anos de idade? E o que elas representam para o processo de aprendizado?

Suzana: A criança até os dez anos está aprendendo essencialmente tudo. Ela está aprendendo não só a lidar com o mundo, mas, antes disso, a lidar com ela mesma. O cérebro dela está em formação biológica anatômica, mas é importante reconhecer que essa formação biológica se dá de acordo com o contexto ambiental que você tem ao redor. É por isso que a família, a escola, a interação pessoal com os professores e com os colegas na escola são fundamentais, porque guiam essa formação do cérebro na infância. A biologia é fundamental, mas não é só ela que determina quem você se torna no final da infância. É a combinação das duas coisas.

Gestão Educacional: Como promover, de forma adequada, o desenvolvimento cognitivo da criança?

Suzana: A gente aprende o que [a gente] faz. A gente melhora naquilo que a gente faz. Então se você quer promover o desenvolvimento cognitivo, você precisa dar oportunidades de a criança usar as suas habilidades cognitivas. E aqui também não há fórmula mágica, você precisa de riquezas de atividades, de oportunidades para fazer coisas diferentes, de demandas diferentes, de desafios diferentes. Essa riqueza de estímulos é importante, mas é riqueza no sentido de variedade e, sobretudo, riqueza de oportunidades de interagir com estímulos que façam sentido para você. Não quer dizer, de maneira alguma, por exemplo, que hoje a criança vai ficar na sala ouvindo ao fundo mandarim e amanhã ela vai ficar ouvindo alemão e cantigas de roda em russo, que não fazem o menor sentido para ela. Isso é estimulação? É estimulação ruim, é ruído que não acrescenta nada para a criança. A criança não tem como manipular aquilo, não tem como usar aquela informação de maneira coerente, de maneira de fato produtiva. Dar estímulos não quer dizer simplesmente soltar a criança em um mar de ruídos de todas as formas. Quer dizer oferecer condições de interação real com coisas diferentes, possibilidades de resolver problemas dos tipos mais diferentes possíveis. Bem mais interessante é oferecer situações para a criança se pôr à prova de uma maneira que seja agradável e que atraia a sua atenção.

Gestão Educacional: Como o cérebro trabalha durante o aprendizado da leitura e da escrita? Qual a importância das experiências para o desenvolvimento cognitivo e, em particular, o da linguagem?

Suzana: A linguagem é um exemplo em particular dessa interação necessária entre a biologia e o ambiente. Nosso cérebro nasce capaz de aprender qualquer língua que ele possa produzir. Você não precisa saber onde vai nascer; sua mãe pode mudar de país dois dias antes de você nascer e está tudo bem, você é capaz de aprender a língua daquele país novo. Mas a compreensão, a produção da linguagem e a capacidade de você expressar essa linguagem em rabisquinhos, que é essencialmente o que a escrita é, dependem do seu cérebro ter as bases biológicas prontas para isso, o que não acontece imediatamente. Existe um tempo normal de desenvolvimento, que geralmente é diferente para cada criança. Quando o cérebro atinge a maturidade necessária suficiente para começar a compreender a linguagem, produzir movimentos específicos das palavras que têm um determinado significado e associar o significado daqueles sons aos rabisquinhos das letras da língua escrita é que a influência do ambiente é fundamental. É aí que essa oportunidade de resolver problemas, de usar essas capacidades biológicas recém-formadas para lidar com o mundo, para usar a linguagem para lidar com o mundo, é fundamental para que o aprendizado de fato aconteça. Mas lembrar que esse aprendizado depende de uma fundação biológica que talvez não esteja lá no mesmo tempo para todas as crianças é a primeira base fundamental para você saber o que esperar de crianças diferentes. Ao mesmo tempo, é preciso saber que a gente fica apenas tão bom quanto a gente pratica; não dá para esperar que a criança exposta a uma linguagem pobre em casa, que não recebe uma demanda na escola ou oportunidades de melhorar o seu vocabulário, [tenha completo] o seu domínio de sintaxe. Se você não tem oportunidade de colocar as suas capacidades biológicas cognitivas à prova pelo seu ambiente, é claro que você não vai desenvolver essas capacidades. Aí é que a gente reconhece a importância da escola oferecer esse ambiente de desafios saudáveis.

Gestão Educacional: A neurociência descobriu que o cérebro tem um sistema especializado em detectar carícias. O carinho é importante para o desenvolvimento da criança?

Suzana: É fundamental, porque o carinho é esse toque com certa pressão, com certo movimento em partes grandes do corpo, de uma vez só, que é o sinal inequívoco para o cérebro de que a criança não está sozinha no mundo. A falta do carinho é sinal, para o cérebro, de que você está abandonado, não tem quem cuide de você, não tem quem dê atenção, não tem quem te guie e te oriente pelo mundo. Na ausência de carinho, a resposta do cérebro, mesmo que veja outras pessoas ao redor, é tocar todos os alarmes, desligar tudo o que não é essencial e simplesmente sobreviver. Ele entra em um modo de resposta ao estresse que, quando se torna crônico, tem uma série de consequências para a saúde. Quando isso acontece na criança, o cérebro se molda de acordo com aquela realidade. O cérebro da criança que cresce em um ambiente que não tem carinho entende “estou abandonada, tenho de me virar sozinha”. Essa criança se torna um adulto cujo cérebro aprendeu a sempre esperar o pior de todas as situações.

Gestão Educacional: Como se define a sobrevivência nesse caso?

Suzana: É o se virar sozinho em todos os aspectos, desde gastar pouca energia até crescer o menos possível; você vê crianças que têm estatura menor, inclusive com repercussões para a saúde cardiovascular e para a saúde mental. A própria criança vive em um estado de angústia, de ansiedade, sempre espera o pior das situações. Assim, ela acaba se tornando um adulto que também espera o pior das situações. Ela está sempre preparada a tratar qualquer problema como uma catástrofe eminente, que é uma resposta completamente diferente da criança que recebeu carinho, apoio, que aprendeu a lidar com os problemas do mundo como apenas pequenas situações a resolver, que tem uma atitude muito mais saudável justamente graças a esse apoio social que ela recebia e do qual o carinho é a evidência maior.

Gestão Educacional: Como as brincadeiras infantis devem ser encaradas no processo de aprendizagem da criança?

Suzana: A brincadeira é o palco para a experimentação. É a oportunidade pura de se testar, na prática, as habilidades cognitivas, como se interage com as outras pessoas emocionalmente, que resultados as suas ações têm sobre os outros, como você interage com os outros. Brincadeira é oportunidade desde a mais simples experimentação sensório-motora até você ter as brincadeiras de enganar o outro, dentro de um jogo que é experimentação social e emocional. Brincadeiras como o jogo Detetive, em que é preciso solucionar um assassinato e você tem de intuir quem está com medo, enganando, tudo isso são oportunidades fabulosas de aprendizado. Você tem de aprender a identificar e a seguir regras, o que não é nada demais, é apenas a maneira de funcionarmos em sociedade. A brincadeira dá a oportunidade de aprender a conviver com essas regras, testar as suas capacidades e seus limites e testar essas regras de convívio social. São fundamentais o jogo e a brincadeira, não só para as crianças, mas para todo mundo.

Gestão Educacional: Em situações de conflito na escola, o professor, em vez de apenas dizer “não”, também deve ser positivo e sugerir às crianças outras opções para despertar seu interesse?

Suzana: Dizer “não” não resolve nada. A única função que o não cumpre é a de sinalizar o erro, mas só sinalizá-lo não resolve se você não fornecer uma alternativa de lidar com aquela situação, de resolver o problema em todos os sentidos: desde a maneira correta de se escrever uma letra até resolver conflitos com os colegas. A primeira coisa que o professor e a escola têm de reconhecer é que a função deles é dar alternativa. Não é simplesmente punir, dizer “não é assim que se faz”. É preciso mostrar como se faz. A criança não tem a menor obrigação de saber qual é a maneira correta de fazer algo. É o adulto, o professor e a escola que têm de fazer isso. Dar alternativa é fundamental, abrir esse leque de possibilidades melhores e mais saudáveis para os alunos, mas também e, sobretudo, dar o exemplo. É mostrar por meio de suas próprias ações como se faz. Isso tanto para a parte cognitiva, digamos racional, dos problemas do comportamento quanto para a parte emocional. É mostrar também como lidar com problemas dos mais variados. As crianças fazem o que elas veem os outros fazerem.


Revista Gestão Educacional

Entrevista publicada na edição de dezembro de 2013.

http://www.gestaoeducacional.com.br/index.php/reportagens/entrevistas/495-a-neurociencia-do-desenvolvimento-infantil-aplicada-a-educacao

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